"Não sou um advogado do Governo", diz Soares
O segundo debate da pré-campanha das eleições presidenciais, entre Mário Soares e Jerónimo de Sousa, ontem à noite na RTP 1, ficou marcado por um distanciamento relativo do candidato apoiado pelo PS em relação ao Executivo liderado por Sócrates. "Não sou advogado do Governo, não tenho que defender o Governo. Sou totalmente isento." Uma frase que Soares usou repetidamente na primeira parte do debate, depois de Jerónimo o ter tentado vincular às po- líticas governamentais.
Mário Soares acabou por ensaiar esse afastamento face ao Governo e a dada altura pôs mesmo algumas reticências em relação ao projecto de construção do novo aeroporto da Ota "Tenho dúvidas", disse Soares, questionando ainda a origem do investimento e a falta de estudos.
Um distanciamento que o antigo Presidente foi claramente obrigado a fazer, depois de Jerónimo ter admitido "a natural identificação do dr. Mário Soares com as políticas prejudiciais do Governo". O secretário-geral comunista deu exemplos "Ataque frontal aos trabalhadores da administração pública" e redução de privilégios nas reformas. Um ponto que serviu para Soares amenizar, e muito, o tal afastamento que parecia desenhar-se face a Sócrates: "Para manter o sistema de Segurança Social e a Caixa de Aposentações é preciso fazer economias. Nesse sentido, o Governo está a fazer bem. Não se pode fazer uma omeleta sem partir os ovos..."
Mas não foi só em relação ao Governo que Soares resolveu descolar. "Não sou candidato do PS, sou um candidato apoiado pelo PS, um candidato nacional", afirmou o ex-presidente, que também chegou a lembrar que há mais de vinte anos que não tem qualquer cargo no partido. Aliás, nesta altura Soares faz a única referência ao seu amigo desavindo e também candidato presidencial "Manuel Alegre era um candidato que o PS rejeitou e que não quis apoiar." Na fase em que se distinguiram as candidaturas presidenciais à esquerda e a convergência falhada, Soares até chegou a afirmar que "o PS teve realmente algumas hesitações. Tentou António Guterres, como outros, que recusaram".
Papel do PR
Jerónimo de Sousa aproveitou o debate para voltar a usar algumas das bandeiras que tem lançado nesta pré-campanha. Uma delas foi, a propósito do papel do PR, a tese de que os presidentes anteriores não terão cumprido a Constituição. O que gerou um dos momentos vivos do debate, ao visar as presidências de Soares [1986-1996] "No primeiro mandato ficou a ideia de um árbitro que muitas vezes engoliu o apito." O candidato socialista reagiu, dizendo que no primeiro mandato o PCP votou nele e no segundo não votou.
Ainda em termos de poderes e acção do PR, outro ponto alto acabou por ser a divergência evidenciada em matéria de concertação social e do papel presidencial "A concertação social não é um bem ou um mal, como ele disse [Jerónimo] - é um bem. Quando não há concertação há conflitualidade."
'Farpas' para Cavaco
Embora ausente, o candidato que lidera as sondagens, Cavaco Silva, foi implicitamente referido por Soares, duas vezes. A primeira quando sustentou que "há candidatos que não têm ideia do que é uma democracia representativa," e a segunda em termos mais que óbvios "Falar contra a política e os políticos tem uma raíz reaccionária e antidemocrática." Isto quando o que Cavaco tem sublinhado é que não é um político profissional.
Política externa
O secretário-geral do PCP mostrou-se muito longe das ideias de Mário Soares em relação à Europa e também ao papel de algumas organizações internacionais, embora tenham convergido quando realçaram ambos que a NATO deve ter um papel defensivo e não ofensivo. Ou quando falaram da guerra do Iraque. "Temos uma grande submissão em relação à NATO e aos EUA", disse Jerónimo de Sousa, que ainda complementou com uma das frases da noite, que teve direito a réplica de Soares "Foi Abril que abriu as portas [de Portugal] ao mundo, não foi a União Europeia." E ao eurocepticismo do candidato comunista, Soares ripostou: "Abril abriu de facto as portas ao mundo, mas se não tivessemos entrado na UE seríamos uma Albânia." Uma jogada para "arrumar" Jerónimo em termos ideológicos, que até quando se discutiu a China revelou jogo de cintura: "Temos diferenças muito grandes em relação ao modelo econónimo e político [da China]."
O 'ouvidor' e a crise
Com Jerónimo a apostar forte na contestação às críticas ao Governo, Soares fez um esforço notório para não quebrar as regras acordadas entre todas as candidaturas. E acabou por conseguir passar mensagens como a do ouvidor, uma "expressão medieval" que resolveu recuperar. Ou quando tentou acoplar a crise financeira ao perigo de uma crise política.
Declarações finais
No fim, Mário Soares saiu-se claramente melhor que Jerónimo de Sousa. Disse-se preocupado com a segurança, "em vários aspectos", e afirmou que se candidata para vir a ser "o Presidente da estabilidade" "Vou evitar e prevenir os conflitos sociais." Antes da última declaração de Jerónimo, Soares ainda sublinhou que quer ser um "PR da paz" e voltou a referir que apoia o esforço do Governo na área das reformas. Já o líder do PCP preferiu apenas sublinhar que tem "esperança e confiança" no futuro e acabou a dizer que "Portugal é possível".